Greve por um ensino superior público de qualidade (2010)
19 de novembro de 2010
O discurso sobre a crise tem-se traduzido numa justificação da submissão das políticas governamentais às exigências dos mercados financeiros, provocando, a curto e a médio prazo, um acentuar dos problemas, e não a sua resolução.
A estas políticas, é necessário contrapor outras, que aumentem os níveis de protecção social, promovam a criação de emprego, apostem na qualidade do ensino e que limitem a especulação e a acção dos mercados financeiros.
Neste quadro, o ensino superior, enquanto sector estratégico para o desenvolvimento do país, ganha uma dimensão ainda maior através do papel que pode desempenhar no estudo dos problemas e no apontar de caminhos alternativos para o nosso futuro. Não obstante, estão em curso um conjunto de medidas que constituem um sério ataque à educação, ao ensino superior público, aos docentes, aos investigadores e aos estudantes e às suas famílias, apesar de, simultaneamente, tanto se falar da necessidade de aumentar a qualificação dos portugueses,
O crescente desinvestimento no ensino superior tem-se traduzido, entre outros aspectos, numa diminuição significativa do número de docentes em diversas instituições (concretizada através de despedimentos, não renovação de contratos, não substituição de professores aposentados), no aumento ilegal das cargas lectivas (num claro desrespeito pelos estatutos da carreira docente), na distribuição abusiva de serviço docente a bolseiros de investigação e a estudantes de doutoramento (sem remuneração ou com remunerações irrisórias) e no recurso à contratação de docentes a tempo parcial, com contratos precários ou a recibos verdes. Tais situações têm provocado a deterioração das condições de trabalho e, consequentemente, da qualidade da investigação e do ensino, bem como do acompanhamento e apoio aos estudantes.
Do mesmo modo, o alargamento do número de docentes com estabilidade de emprego, previsto no ECDU e no ECPDESP, aprovados em 2009, está seriamente comprometido com esta proposta de Orçamento de Estado (OE), que acaba de ser aprovada na generalidade, com a conveniente abstenção do PSD. De facto, importa perguntar como se conjuga este OE com o que é afirmado no preâmbulo do ECDU, que estipula "o alargamento dos lugares do topo da carreira, devendo o conjunto de professores catedráticos e associados representar entre 50% e 70% dos professores, não podendo o número de professores convidados exceder um terço em cada categoria", e no preâmbulo do ECDESP, que assegura "o alargamento dos lugares da carreira, devendo o conjunto de professores representar pelo menos 70% dos docentes de cada instituição."
Apesar de no OE estarem contempladas algumas excepções relativas ao ensino superior, há questões que não estão suficientemente esclarecidas. Em particular, no que respeita aos concursos que possam originar promoções de categoria ou implicar a contratação de pessoal sem vínculo à Função Pública, a passagem a professor auxiliar ou adjunto dos assistentes que se doutorem, a aplicação do regime transitório no Politécnico, bem como os efeitos resultantes da realização de provas de agregação.
O contrato de confiança assinado, já em 2010, entre o governo e as instituições públicas do ensino superior, com os objectivos anunciados de aumentar o número de estudantes e de colmatar as dificuldades orçamentais das instituições, está a ser unilateralmente inviabilizado pela actual proposta governamental. Não se trata aqui de uma mera questão de gestão, mas sim de uma crescente desresponsabilização do Estado pelo financiamento do ensino superior público, pois não é possível gerir as diferentes Universidades e Politécnicos sem os recursos financeiros mínimos. Ao que temos vindo a assistir é a cortes orçamentais sistemáticos, que situam o nível de financiamento ao início da década. E isto, num quadro em que Portugal é dos países da Europa com menor investimento per capita no ensino superior e, ao mesmo tempo, com propinas das mais elevadas no espaço europeu.
Os professores do ensino superior são agora confrontados não só com a manutenção do congelamento das progressões (situação que se arrasta desde 2005), violando o estabelecido nos estatutos da carreira docente, mas também com cortes salariais significativos e inaceitáveis. Para um grande número de docentes, estes cortes salariais vão representar um valor superior a mais de um mês de vencimento, num claro desrespeito pelo trabalho que, incansavelmente e em condições cada vez mais difíceis, têm vindo a desenvolver pela dignificação e qualidade da investigação e do ensino superior público.
Efectivamente, para o ensino superior, os últimos anos têm sido marcados por políticas e iniciativas legislativas que têm vindo a prejudicar gravemente o funcionamento das instituições e a degradar as condições de trabalho dos seus docentes.
O RJIES traduziu-se num forte ataque à gestão democrática das Universidades e dos Politécnicos, diminuindo drasticamente a participação dos docentes nos órgãos de gestão e reforçando os poderes unipessoais e a hierarquia gestionária das instituições, que passaram a responder, em muitas situações, a entidades externas, algumas totalmente fora do controlo (como os curadores das Fundações).
Os novos ECDU e ECPDESP vieram acentuar a tendência para a burocratização da actividade docente e promover o individualismo e a competição num sector em que o trabalho colectivo e solidário é absolutamente imprescindível para o avanço do conhecimento científico e para o funcionamento das instituições. Os Regulamentos de Avaliação de Desempenho e de Garantia da Qualidade são disso uma clara expressão, revelando, em geral, uma maior preocupação com a construção de instrumentos de controlo individual dos docentes do que com a promoção de um ensino e de uma investigação de qualidade, só possíveis com o reforço de laços de cooperação. Acresce, agora, que todo o esforço e constrangimentos que a sua implementação irá implicar não se traduzirão em qualquer alteração do posicionamento remuneratório dos docentes, contrariamente ao anteriormente assumido pelo governo como justificação para a sua implementação.
O Ministério da Ciência e da Tecnologia e do Ensino Superior tem-se revelado incapaz de produzir um qualquer pensamento estratégico sobre a reordenação do sistema de ensino superior, limitando-se à publicação de medidas avulsas, sem qualquer fio condutor. Também agora tarda em dar esclarecimentos quanto à repercussão das medidas anunciadas no Ministério que é suposto representar e defender.
Toda esta situação tem tido e terá ainda mais implicações na vida e na actividade profissional dos docentes do ensino superior. Assistimos, nas diferentes instituições, ao crescimento de um ambiente de preocupação e frustração, resultantes do aumento brutal e desumano do volume de trabalho a realizar, da obrigatoriedade de cumprimento de requisitos de interesse questionável e sem sentido, da perda de espaços de autonomia essenciais para o desenvolvimento de projectos de investigação, de receios com a manutenção do trabalho, da diminuição, em suma, das condições para o exercício das funções de docência e de investigação com a qualidade indispensável.
Num contexto em que é identificada a necessidade de se ter 40% de diplomados na franja etária entre os 30 e os 34 anos, em 2020, o que implicaria um alargamento do número de estudantes no ensino superior, não se percebe como tal objectivo pode ser atingido com um OE que reduz as verbas para o ensino universitário em 12,3% e para o politécnico em 7,1%. A nova fórmula, já em vigor, para cálculo dos apoios a atribuir no âmbito da acção social escolar, a par do impacto que a aprovação da actual proposta de orçamento vai ter na vida de muitas famílias, terá como consequências inevitáveis o aumento da selectividade social no acesso ao ensino superior e o abandono escolar por um número significativo de estudantes. De facto, a partir de agora, os estudantes e as suas famílias terão ainda menos condições para suportar os custos das propinas e todos os outros inerentes à frequência do ensino superior, apesar de o n.º 2 do artigo 20º RJIES (Lei n.º 62/ 2007) afirmar que “a acção social escolar garante que nenhum estudante é excluído do sistema do ensino superior por incapacidade financeira”.
A aprovação da actual proposta de Orçamento terá as seguintes consequências para o ensino superior e para os docentes e investigadores:
- Diminuição da qualidade da investigação e do ensino superior público
- Aumento da selectividade social no acesso e frequência do ensino superior
- Brutal diminuição dos salários dos docentes
- Corte de verbas para as instituições
- Continuação do congelamento das carreiras
- Impedimento de novas contratações de professores
- Aumento dos descontos para a Caixa Geral de Aposentações (em 1%)
- Congelamento das pensões de aposentação
- Aumento dos descontos das instituições para a ADSE em (1,5%)
- Redução das comparticipações da ADSE
- Aumento do IVA em 2%
- Manutenção do aumento de impostos em sede de IRS
- Eliminação de deduções fiscais
- Completo e total desrespeito por compromissos anteriormente assumidos pelo governo
Em conclusão, estas medidas orçamentais inserem-se numa linha continuada de desresponsabilização do Estado perante o ensino superior público e não geram alternativas justas e equitativas de crescimento económico e de bem-estar social.
Por isso, o SPN apela a que todos os docentes manifestem
o seu descontentamento e indignação,
aderindo à Greve Geral de 24 de Novembro de 2010.
3 de Novembro de 2010
Departamento de Ensino Superior do SPN