Celeste Caeiro (1933-2024)
15 de novembro de 2024
“Se não fosse eu, ele não estava ali!”
Atalaia, 8 de setembro de 2019, 17h21
Decorria o concerto do Sebastião Antunes e da Quadrilha, quando decidi aproximar-me do Palco 25 de Abril. Z6 firme na mão, procurei uma brecha nas grades, o mais de frente possível para o vocalista. Era impossível!... O recinto estava quase repleto, o comício não tardaria e outras almas tinham-se colocado, estrategicamente, para dele desfrutarem. Em pleno. Sem alternativa, escolhi o alvo e avancei!
— Boa tarde, camarada! Posso encostar-me aqui um minuto para tirar duas ou três fotos?
A senhora, cuja postura física não conseguia esconder um longo percurso de vida e de luta, nem virou a cabeça o suficiente para ver quem a importunava. Moveu-se ligeiramente para junto de quem a acompanhava, libertando o espaço necessário para eu me encaixar.
Ao fim de uns quantos disparos, senti uma mão trémula no ombro e ouvi, finalmente, a voz da figura misteriosa que, até então, me tinha ignorado quase por completo:
— Se não fosse eu, ele não estava ali! — atirou.
Fixou-me o olhar, ao mesmo tempo que apontava o frágil braço esticado para o palco. Moveu o dedo indicador, ora para cima ora para baixo, e repetiu:
— Se não fosse eu, ele não estava ali!
Surpreendido, não consegui logo interpretar o enigma. Primeiro pensamento: que fixe, deve ser a mãe do Sebastião! Ia verbalizar esta espantosa dedução, mas não fui a tempo. Felizmente! Então, como que percebendo a minha desorientação:
— Eu sou a mulher dos cravos! Se não fosse eu, ele não estava ali! — apresentou-se, com ternura, mas com evidente orgulho nas palavras ditas.
— Sim, sim! Eu conheço a história! Que sorte a minha de a ter conhecido, ainda mais nesta hora e neste local! — disse-lhe entusiasmado, na auto tentativa de apagar da mente a parvoeira da primeira interpretação. "Ele" não era o artista, o músico, o cantor. "Ele" era o Cravo vermelho, de gigantesca dimensão, impresso nas telas que pendiam nas laterais da estrutura do "25 de Abril".
— Não vou perder esta oportunidade! A camarada é História viva. Posso tirar-lhe uma fotografia? Posso?
Novamente ignorado! A camarada, melhor a Celeste Caeiro, nascida em 1933, estava focada novamente no espetáculo e voltei a duvidar do estado da sua audição.
— Celeste! Olha o jornalista! — gritou a mulher mais alta, que não havia perdido pitada da cena. — Ele quer tirar-te uma fotografia, Celeste! — voltou a gritar, enquanto carinhosamente colocava as mãos nas costas da Celeste para a rodar na minha direção.
Enquadramento possível e cá vai!... Conferida a qualidade da obra, ampliei o registo e levei o visor da Nikon até junto dos olhos da nossa heroína. Olhou de relance e...
— Então? Ficou bem? — ainda insisti, mas não voltei a merecer a sua atenção! Já tinha despendido tempo excessivo comigo. A companheira ainda esboçou um sorriso e um aceno tímido.
Inchado com o episódio, ia regressar para junto da trupe quando ouvi outra voz feminina:
— Então, senhor jornalista! E nós não somos gente?
Poucos metros atrás, estavam três senhoras, duas décadas mais novas, pelo menos!
— Claro que são gente! E gente bem bonita! Juntem-se lá… — anui, de novo feliz com tanta solicitação.
Como é óbvio, o mérito era todo do bichinho novo. Novo disparo e lá fui mostrar o resultado! Também elas tinham direito!
— A foto está muito bonita! — elogiou a terceira personagem da imagem.
Fiz novamente zoom e, abusando dos recursos tecnológicos da máquina, exibi a qualidade da definição dos rostos das três simpáticas criaturas, uma de cada vez. Qualquer uma delas seria bem jovem no dia em que a Celeste distribuiu os cravos aos militares de Abril! Ela, a Celeste, não dissera nada sobre o seu retrato, captado na Atalaia. O trio, de pele devidamente hidratada e colorida por cosméticos vários, sem grandes marcas da ação agressiva do tempo, brinda-me com isto, para encerrar o ato:
— Olhe, não dá para tirar as rugas?
Ricardo Jorge Cardoso
O funeral de Celeste Caeiro será realizado em cerimónia reservada à família, mas foram anunciadas diversas homenagens póstumas para recordar o seu contributo singular para a democracia portuguesa. Celeste Caeiro deixa um legado de simplicidade e força, lembrando a todos que, mesmo nos momentos mais difíceis, gestos pequenos podem mudar o rumo da história.