2024, um ano para a História (Manuel Loff)

08 de janeiro de 2025

Manuel Loff, no jornal Público (Edição de 17 de dezembro de 2024)

O ano 2024 deixa, para a história, um legado sombrio que nos permite antever problemas muito graves com que nos vamos confrontar no resto da década. Nenhum deles é novo, mas todos se agravaram. Como Mongane Serote, poeta e resistente sul-africano, lembrava em 1982, "a exploração e a opressão são cérebros que, sendo loucos, só conhecem a violência".

A enésima vaga de limpeza étnica perpetrada por Israel desde 1947 abriu o caminho para o genocídio perpetrado por um Estado que se descreve como "baluarte da civilização ocidental" — a mesma retórica que Salazar usava para descrever a guerra punitiva mas inútil que impôs a angolanos, guineenses e moçambicanos, que, deveriam lembrar-se os israelitas, acabaria com o seu regime e o colonialismo português. "É importante chamar genocídio a um genocídio", recorda Francesca Albanese (relatora especial da ONU para os Direitos Humanos nos Territórios Ocupados da Palestina). "Se formos ao médico porque temos cancro e nos for diagnosticada febre, ternos um grande problema — o mesmo acontece com as pessoas que estão a ser vítimas de genocídio."Serial killer à solta no Médio Oriente, Israel deixou "na Faixa de Gaza um deserto de escombros e de restos humanos", onde os "sobreviventes lutam para se manterem vivos e os corpos estão a decompor-se nas ruínas do que antes eram clínicas e hospitais" (Tlaleng Mofokeng, relatora especial para o Direito à Saúde, 31/10/2024). A impunidade do perpetrador, assegurada pela cumplicidade dos países da NATO e de quase todos os da UE, contamina-nos moral e politicamente para sempre.

Nesta impunidade, Israel está a redesenhar fronteiras e a composição humana do Médio Oriente a uma escala e ritmo absolutamente incomparáveis aos da Rússia na Ucrânia, por exemplo, e sem que NATO e UE mexam uma palha ou permitam que a ONU o faça. (2024 deixa-nos também isso: a demonstração mais cabal do cinismo ocidental acerca do direito internacional.) Agrediu, de novo, o Líbano (um milhão de deslocados, milhares de mortos). Aproveitou a queda de Bashar al-Assad para ampliar o território que ocupa ilegalmente desde 1967. Netanyahu espera a tomada de posse de Donald Trump para, com apoio dos EUA, atacar o Irão, mas não teve de esperar por ele para lançar o ataque sem precedentes. à ONU e às suas agências (em especial à UNRWA). Voltamos, como em tantas outras dimensões, aos anos do fascismo de entre-guerras: o que governa o sistema internacional é a disponibilidade para a guerra e o elogio desta como a única solução para a "desordem internacional" — a mesma de que é responsável quem faz a guerra.

O ano 2024 ficará para a História como um ano excecional no triunfo dos narcísicos. Trump e Musk reencarnam a desfaçatez e a arrogância do Berlusconi de há 30 anos, mas a diferença é que Trump reassumirá o poder na superpotência que faz a gestão do centro imperial do sistema-mundo capitalista, ainda por cima neste ciclo de corrida aos armamentos que ele próprio acelerou no primeiro mandato, e que foi entusiasticamente adotado pelos governos NATO, o nosso incluído. O mesmo homem que incitou e preparou há quatro anos o assalto fascista ao Capitólio é um verdadeiro perigo para o mundo, sobretudo se ponderarmos as ameaças à China, que, a concretizar-se, farão a ameaça nuclear na guerra da Ucrânia parecer uma brincadeira.

Todas as esperanças para 2025 estão, por isso, nos palestinianos que resistem ao esmagamento e no movimento de solidariedade internacional, que, por mais repressão e censura que se desate contra ele, não cessa. Nos argentinos que se levantam contra a devastação social provocada por Milei, outro dos narcísicos descontrolados que, ao fim de um ano no poder, deixou 53% da população na miséria. Estão nos gregos, que, com a greve geral do mês passado, resistem há 15 anos à mesma receita de Milei. Nos franceses, que não deram um dia de descanso a Macron no seu ataque aos direitos sociais, e que derrotaram, com a Nova Frente Popular, a ameaça fascista de Le Pen que Macron não cessa de favorecer. Estão na nossa perceção coletiva do que está verdadeiramente em causa.

 

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