Tornar todos mais pobres e mais precários para combater a crise

7 de abril de 2020

Ricardo Paes Mamede, em Ladrões de Bicicletas (5 de abril de 2020)

 

Era uma questão de tempo até alguém começar com isto.

O guião é sempre o mesmo: virar funcionários públicos contra os do privado (porque os primeiros têm emprego seguro); trabalhadores com contrato sem termo contra precários (porque os primeiros são sempre mais protegidos que os segundos); os mais velhos contra os mais novos (porque aqueles gozaram e gozam de "privilégios" que estes pagam e não sabem se os irão ter no futuro); e a lista continua. Como se a origem das desigualdades profundas na nossa sociedade estivesse em quem vive do seu trabalho. Como se a solução fosse tornar todos mais pobres e mais precários.

Não vamos esquecer as prioridades. Primeiro, manter sob controlo a propagação do vírus e proteger os mais vulneráveis. Segundo, garantir que os serviços de saúde têm os meios de que necessitam para prestar assistência a quem precisa e para proteger os profissionais mais expostos a riscos. Terceiro, garantir que ninguém fica sem acesso a bens e serviços essenciais devido à paralisação da vida económica. Quarto, preservar tanto quanto possível as capacidades produtivas, para continuar a providenciar o que é necessário ao conjunto da população e permitir uma retoma mais rápida assim que a situação o permitir. Quinto, distribuir da forma mais justa possível os custos disto tudo.

Distribuir os esforços significa começar por quem poderia contribuir muito mais – e não por aqueles que estão menos mal do que outros. Funcionários públicos, trabalhadores com contratos sem termo e pensionistas continuam a pagar os seus impostos em função do que recebem. Numa sociedade decente, este tem de continuar a ser o princípio.

O principal instrumento à nossa disposição para fazermos justiça na distribuição dos esforços é o sistema fiscal. É aí que deverá focar-se o debate quando as outras prioridades estiverem acauteladas.

Outros instrumentos mais poderosos – como a emissão de moeda, o nível das taxas de juro ou as transferências entre países – não podemos neste momento controlar. Quanto a estes, temos de continuar a exigir que as autoridades europeias assumam as suas responsabilidades, para que o combate à emergência de saúde pública não sirva de desculpa para mais uma década de austeridade e de perda de direitos. Se não o fizerem, temos de preparar-nos para mudar de vida.

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