Universidade Digital: haverá vida académica online?

1 de julho de 2020

Licínio C. Lima, in Universidade Cidadã (29/jun)

 

As escolas e universidades sempre incorporaram as tecnologias do seu tempo, com maior ou menor atraso, com impactos considerados melhores ou piores; desde a escolarização moderna, com o ensino em classe e o livro impresso, até hoje, com a chamada “revolução digital” e, amanhã, com a inteligência artificial. Como não há tecnologias nem processos de educação neutros, é necessário observar criticamente os impactos tecnológicos na educação e analisar os seus efeitos democráticos, culturais e pedagógicos.

Está em emergência, há já bastante tempo, uma universidade de tipo digital, seja em termos de processos de governação e de instrumentos de gestão, por todos sentidos, seja ainda em termos de processos e materiais didáticos, modalidades de “educação a distância”, cursos virtuais, por vezes com disseminação em larga escala. Em tempos de pandemia, alguns desses recursos digitais conheceram protagonismo e constituíram-se como alternativas de tipo emergencial em universidades que, atempadamente e responsavelmente, responderam ao início de uma crise de saúde pública interrompendo o ensino presencial. As dificuldades daí resultantes são de todos conhecidas, incluindo diversos problemas de acesso digital, pedagógicos e de motivação dos estudantes, de intensificação do trabalho docente, de cansaço por parte de todos, de interrupção de estágios, de atividades de campo, de trabalhos laboratoriais, de acesso a arquivos e a bibliotecas, etc. De uma maneira ou de outra conseguimos sobreviver a tudo isso e enfrentar as dificuldades do momento. Mas, entre muitos, fica a ideia de que se a situação de saúde pública se vier a prolongar, ou até a degradar, não voltaremos a lidar com tal situação com o mesmo capital de curiosidade, tentativa-erro, motivação e esperança, como sucedeu da primeira vez. Mesmo que as soluções tecnológicas se sofistiquem, a verdade é que a vida académica, em todas as suas dimensões e implicando todos os intervenientes, saiu fortemente abalada daquele processo de clausura da ação educativa e das relações pedagógicas.

Por mais tecnologicamente avançada que seja, a universidade digital parece incapaz de resistir perante o confinamento da experiência educativa a um ecrã. Os recursos digitais revelaram algumas virtualidades enquanto complementos à educação universitária e ao ensino presencial, mas deixaram à vista imensos problemas, até mesmo pensando em processos mistos capazes de uma integração de atividades a distância e de atividades presenciais (como no chamado “b-learning”), apesar de tudo bastante mais exigentes. Para uns trata-se de dificuldades que acabarão por ser tecnologicamente superadas, para outros não se trata de uma questão tecnológica, mas antes de um problema de conceções e práticas diferenciadas de educação universitária. É neste último grupo que se situam aqueles para quem a ideia genérica de uma “educação a distância” é um oximoro, uma contradição nos termos. A educação universitária é, afinal, a vida académica, e por isso a primeira não pode ser cindida da segunda. Não há, simplesmente vida académica online, mas apenas fragmentos e sucedâneos. A própria ideia de “excelência universitária”, pretensa marca das universidades de “classe mundial”, perde a sua força de slogan diferenciador: é difícil, pelo menos para já, acreditar numa excelência educativa a distância, a menos que se confunda a amplitude do fenómeno social “educação” com “kits” de formação a distância, capacitações, qualificações e competências adquiridas online, definitivamente à margem de uma educação integral que, antes de tudo mais, se afirma como uma relação social complexa, um processo de desenvolvimento pessoal e social que visa a humanização dos seres humanos. Ou que se esqueça uma regra básica do pensamento pedagógico moderno; tal como o ensino presencial, também o ensino a distância só se confirma como ensino verdadeiro se existir aprendizagem.

A educação universitária, conceito mais amplo, exige contacto humano e presencial prolongado, típico de um fenómeno de socialização secundária, em ambiente académico: um ambiente que está longe se ser apenas um contexto, sendo também um ator social e uma ação educativa poderosa. Exige diálogo humano face a face, socialização entre pares, trabalho individual e coletivo, solidariedade e cooperação, trabalho artesanal (de campo, laboratorial, prático, etc.), vivências culturais, associativas, cívicas e políticas. Tudo o que os sistemas digitais revelam grande dificuldade em oferecer e que os sistemas de franquia de bens e serviços educativos de tipo comercial não só tendem a desprezar como são incapazes de conceber de forma não padronizada. Não compreender como a forma digital interfere no conteúdo do ensino e da aprendizagem, como o meio, também aqui, é a mensagem, como a educação é sempre referenciada a um quadro de valores e visões do mundo e nunca apenas a questões de ordem processual e técnica pretensamente neutras, seria de uma ingenuidade universitariamente confrangedora ou, pior do que isso, já manipuladora e com objetivos alienantes: o inverso de uma universidade livre e cidadã.

Em setembro próximo, qualquer que seja a situação em termos de saúde pública, voltaremos a ser confrontados com todos estes problemas, sem prazos marcados e sem medidas estruturais à vista. A rica experiência já vivida possibilitaria a compreensão do que está em jogo, partindo corajosamente da constatação de que não existe vida académica online e que, como tal, se nada for alterado em termos estruturais, iremos permanecer num processo de busca incessante de pequenos paliativos, apresentados sob estilo épico, individualizando as responsabilidades e as soluções, por vezes infantilizando os docentes. Vendo a educação universitária ficar inexoravelmente adiada, para trás, desvitalizada.

A procura de alternativas é tão difícil quanto urgente e, no limite, é uma responsabilidade indeclinável dos universitários, dos reitores e dos governantes. Choca ver como as instituições de ensino superior não conseguem apresentar publicamente uma agenda séria e ambiciosa, exigente e realista. Como nos vamos adaptando às soluções mais fáceis, como aquela do máximo de aulas a distância até 70%, quando inúmeras alternativas são possíveis e desejáveis, exigindo, porém, mais recursos, espaços pedagógicos e adaptação de outros, desbloqueamento das contratações docentes, rejuvenescimento dos professores, capacidade organizativa e alguma criatividade pedagógica. Se nada de substancialmente diferente for feito, correremos o risco de prolongar indefinidamente o estado emergencial, de normalizar situações de exceção, de nos virmos a transformar em instrumentos dos nossos próprios instrumentos de trabalho pedagógico online, de perdermos o que resta de educativo na nossa função docente, de alienarmos as nossas responsabilidade educativas para com os nossos estudantes e de lhes proporcionarmos uma experiência universitária mais ou menos a distância, fragmentada, sem vida académica e sem alma. Ou seja, um instrumento em nada universitário.

Partilha