O elogio dos Professores, por Diogo Ramada Curto (2012)
04 de agosto de 2012
É urgente pôr cobro ao desinteresse dos representantes da alta cultura por aqueles que formam, nas suas lutas pelo ensino travadas no dia-a-dia, a mais importante base de um sistema cultural.
Em Portugal, é urgente que aqueles que se dizem representantes da alta cultura se interessem pelo ensino básico e secundário. À imagem pejada de equívocos e de ideias feitas acerca das professoras e dos professores, haverá que opor uma campanha de revalorização dos mesmos. Basta de tanto desprezo! O trabalho dos professores e as condições em que exercem o seu papel de educadores merecem particular atenção.
As sucessivas depreciações salariais a que este grupo foi sujeito, a multiplicação de ideias erradas acerca da sua resistência à avaliação, a sua desautorização, numa teia de relações que interpretou mal a relação entre a escola, a comunidade e as responsabilidades da família e a preocupação excessiva em exercer sobre eles uma actividade de policiamento e vigilância (como notou António Guerreiro no Expresso, edição de 14 de Julho) contribuíram para uma situação a que é urgente pôr cobro.
Por sua vez, o artificialismo de muitos representantes da alta cultura conduziu a uma espécie de desinteresse pelos que formam, nas suas lutas pelo ensino, travadas no dia-a-dia, a mais importante base de um sistema cultural.
Por exemplo, uma das expressões máximas do pedantismo da suposta alta cultura levou, muito recentemente, a atribuir a ignorância dos chefes políticos — que já não são o que eram... sem nunca terem sido o que deveriam – à voracidade invasora de uma cultura de massas, determinada economicamente (Clara Ferreira Alves, também no Expresso, edição de 21 de Julho).
Discordo, apesar de reconhecer que o propósito era elevado e corajoso. Pois consistia em explicar as jogadas feitas por um ministro poderoso para a obtenção de uma licenciatura de aviário.
À pobreza da antinomia entre cultura de elite e cultura de massas, artificial e pedante, será necessário começar por opor uma análise das razões escondidas que a determinaram e, sobretudo, que explicam o silêncio a que tem sido votado o mais numeroso grupo com responsabilidades na formação das novas gerações. Se não compreendermos o papel dos professores do ensino básico e do secundário, se não soubermos fazer a defesa da sua actuação, muitas vezes na contra-corrente das condições em que trabalham, teremos sempre da cultura uma ideia truncada. Logo, povoada de oposições mais ou menos artificiais, como a que separa a cultura de elite da de massas.
Que um sistema cultural depende da configuração dos grupos que nele participam parece ser uma evidência elementar. No caso português, como em muitos outros, pode discutir-se se o peso da reprodução familiar e dos grupos sociais dominantes alguma vez foi contrariado pelo acesso ao ensino e às oportunidades meritocráticas que este deveria proporcionar. O trabalho dos professores entra aqui, opondo-se em grande medida aos mecanismos da reprodução social e permitindo a criação de uma sociedade mais livre e aberta. Mais igualitária, talvez...
Claro que são sabidas as fragilidades do nosso sistema de ensino, ao nível da sua legislação inadequada e cada vez mais burocratizante, do seu financiamento, das suas instalações e, em muitos dos casos, da sua precária institucionalização, incluindo a formação dos professores. O funcionamento do mesmo sistema depende, também, de condições e de meios que se encontram muito para além das intenções dos que nele participam — em primeiro lugar, dos professores. E, no entanto, sem uma conjugação de esforços destes últimos nada pode ser feito.
Pouco importa que as divisões políticas, jornalísticas ou académicas levem a separar cultura e ensino. Os dois sistemas têm de ser pensados em conjunto.
Pouco importa também que os representantes da alta cultura se concebam a si próprios em vazo fechado, numa redoma de cristal reluzente. Tendo, ao longe, uma ideia mais ou menos tosca de um público ignaro, alienado por configurações sucessivas de uma cultura massificada de consumo, dele se distinguindo a todo o custo através da referência a géneros, arcanae, que permanecem só ao alcance de iniciados e dos que sabem o que se faz “lá fora”. É que os mesmos representantes também se encontram presos numa malha de instituições e instâncias: fundações, organismos públicos, universidades, indústrias culturais, grupos económicos de comunicação, etc.
A ponto de, muitas vezes, as suas interpretações não passarem de respostas que servem os interesses mais imediatos de quem lhes paga. De qualquer modo, a minha discordância é total em relação ao argumento de que a cultura de massas, baseada exclusivamente no desejo da ganhunça, tudo invadiu, a ponto de já não haver chefes ou génios literários. E os riscos de projectar no passado uma visão idealizada, expressão da melancolia por uma idade dourada, não são os únicos que se correm.
Como procurei sublinhar, a pobreza da simples oposição em que se baseia um argumento desta natureza é bem reveladora de duas coisas: por um lado, do ensimesmamento em que caíram muitos dos representantes de uma suposta alta cultura, que comunicam entre si em vaso fechado, numa espécie de pretensiosismo de que não estão ausentes infindáveis tricas ou conflitos de capelinhas; por outro lado, de uma incapacidade para pensar como é que funciona um sistema cultural, que não pode ser reduzido a simples antinomias, pois é composto de instituições, de relações entre vários sistemas, incluindo aqui as indústrias culturais, e de múltiplos agentes, incluindo os professores dos ensinos básico e secundário.
O elogio destes últimos terá sempre de passar pelo reconhecimento do seu trabalho, bem como pela análise serena das condições em que exercem o seu magistério. Sem este esforço, são imensos os riscos de repetir velhas ideias acerca da falta de génios (ou dos líderes que já não são cultos) no meio de um povo ignaro...